- A coisa está feia. Terra secando, gado morrendo. Vou mandar todo mundo embora, vou vender a fazenda. Mas, não se preocupe, você terá o necessário para a viagem... É assim mesmo, - sentenciara o patrão, arredando-se, sem atentar para a perplexidade do infortunado.
Nascera ali. Gente vinda de longe, açoitada pela fome. Lá algum dia, arranjados todos num pedaço de terra de ninguém. Crescera labutando, manhãzinha a pôr-do-sol. Vida simples, vazia de grandes desejos. Panela na trempe, pinga de vez em quando, cigarro de palha. E a roça. Principalmente a roça, seu mundo! Tudo plantadinho, os frutos resultando.
Não se perguntava sobre mais nada. Ele e a gente de sua espécie, ele e sua mulher, aquela que conhecera na festa da cidadezinha a léguas distante e que lhe dera filhos; ele e o quinhão a ser cuidado, ele e os bichos e os pássaros daquele lugar.
Numa dessas horas em que se está esquecido de tudo, um homem adiantou-se do grupo que se achegara, exibindo uma porção de papéis: "Esta terra é minha. Você ficando, preciso de gente que conheça bem a redondeza, vai ser meu empregado". Sem entender nada daquilo, sem ter para quem apelar, mais tarde, concordou. Acabou ficando.
Longa trajetória, com mulher e filho transportados em pau-de-arara, juntamente com outros. Encontraria o irmão de sua companheira que lhe prometera abrigo, quando quisesse. Naquele percurso cansativo, quanta lembrança! E não sabia por que matutava sobre acontecimentos da época em que passou a ter patrão.
Do filho deste se lembrava com prazer. Rapaz que foi cedo para a capital, estudar. Vinha muito pouco à fazenda, brigava um bocado com o pai. Certa feita, na hora da conversa na varanda: "Pai, os empregados da fazenda necessitam de exame médico e seus filhos devem aprender a ler". Briga séria. Muito tempo sem se falarem. Menino bom, o filho do patrão!
O que lhe veio à mente, bem forte, foi algo de que nunca esquecera. O patrão não devia ter mandado o menino ao curral, a vaca estava muito braba, ele sabia. Foi assim, um coice só. O outro, pequenininho, vomitou dias e não aguentou.
Agora, restava um, o mais velho. Medo horrível, o de perder o terceiro. Subitamente, o barulho local arranca-o das recordações. A cidade, enfim. O necessário do patrão não dera sequer para a comida na viagem. Anos e anos de trabalho. No fim, um "Deus lhe proteja"!
Maravilhado com a cidade, logo de chegada, o alvoroço, as luzes. Era noitinha. Não se lembrava mais de fatos tristes. Devia ficar alegre como a cidade, como esta parecia estar dias antes da noite de Natal.
Procurando, aqui e ali, o endereço do irmão de sua mulher, chegou afinal ao que, mesmo com esforço, não se chamaria de casa. Foram bem recebidos, ao jeito da gente da roça, mesmo quando na cidade. Banho de lata, café quentinho com restos de pão sem manteiga reanimaram os recém-chegados.
No outro dia, a animação do cunhado:
- Escuta, amigo, estão precisando de gente no meu trabalho. Não tem carteira assinada. Você sabe como é, né? Estão embelezando a cidade para a festa de Natal. Vou lhe arrumar esse negócio, tá? Para começar não é nada mal.
Iluminação vistosa no centro. E na avenida principal. O povo nas ruas. E mil e uma maneiras para vender. Vender tudo. O comércio, agitado. Instantes de risos e de luzes. Claro que não seria uma iluminação geral. Somente em pontos visados pelas autoridades. Alguns bairros não poderiam deixar de ter a claridade necessária durante os festejos natalinos.
Em um desses bairros trabalharia o novo peão. Fosse no que fosse, empenhava-se a fundo. Esquecia-se das horas. Trabalhava com garra. Faltavam poucos dias para o dia principal. Ansioso por pegar o dinheirinho. A primeira coisa a fazer seria comprar um presente para o filho. Um presente com gosto, e bonito. Um presente comprado na cidade.
O menino iria vibrar, um caminhão bem grande. Ele sempre dizia que, quando crescesse, iria dirigir carro, conheceria uma porção de lugares. Na sua terra, sua vida consistia em ir ajudando o pai e, nas horas de folga, tomar banho de riacho, pegar passarinho e ficar olhando as formigas, a interrogar-se sobre aqueles bichinhos em fila, um atrás do outro, certinho.
Encontrava-se sentado à porta do tio. Carregava uma esperança que nunca acabava. Sabia da intenção do pai. Contente também estava, porque o pai ajudava a cidade a ficar bonita. Todo mundo precisava saber do que o pai fazia, que era muito importante.
De vez em quando, um sorriso aflorava-lhe no rosto pequenino e pálido. A hora ia passando, e o pai mais perto de chegar. Ria por tudo, e sozinho, do carro que passava cheinho de gente, da felicidade de quem ia dentro dele, e da felicidade do próprio veículo. Sim, por que não do carro também?
E riu muito, um riso sem medo, quando olhou para cima e viu a noite bonita com aquele mundão de pontos brilhando. "Bem que tinham razão, disseram que a noite de Natal era diferente, mais bonita mais alegre, mais feliz. Deus ficava lá em cima, velando por todas as crianças. Papai Noel viria, de mansinho, colocar o presente no chinelo, e ele entrava pela chaminé".
Mas, na casa em que estava não havia chaminé, então ele entraria por um daqueles buracos da parede. "Que bobagem! Menino grande não acredita mais em Papai Noel, invenção para menino pequeno". O tempo corria, e o menino não resistia ao sono que chegava devagarinho, devagar, bem forte. De cabecinha encostada à porta, dormiu. Um sono de criança sofrida e esperançosa.
Os homens lhe haviam dito:
- Vamos preparar as gambiarras, você pega os bocais, coloca neles dois pedaços de fios pequenos e depois prenda cada perna nesses fios maiores, na parte um pouco descascada. É muito fácil, enrola bem no fio, certo?
"Um pouco"...? pensou.
A produção tinha sido boa. Antes de terminar o dia, uma rua inteirinha concluída. Poderia até ir embora para casa. Mas, uma gambiarra enorme estava sendo colocada numa outra rua, e somente por dois homens. Prontificou-se a ajudar.
Uma parte, terminada em duas pontas, presa naqueles outros fios no alto. Pegaria a outra que se arrastava pelo chão e evitaria, inclusive, que os bocais acabassem de partir. Estendeu as mãos e segurou os fios com firmeza. Estava craque naquele serviço.
Um frêmito, um tremor, uma coisa nunca sentida invadiu-lhe o corpo por inteiro. Força poderosa o prendia aos diabos daqueles fios e não o deixava soltar-se. E a fazenda, e a mulher, e os filhos mortos, e o filho vivo à sua frente. Sobretudo este, de riso na face, à espera do presente. O caminhão, o caminhão, se afastando, ele também se afastando, tudo e todos se distanciando.
O som de um autofalante se espraiava:
Natal, Natal das crianças
Natal da noite de luz
Natal da estrela guia
Natal do Menino Jesus.
(Raymundo Luiz Lopes)
Nascera ali. Gente vinda de longe, açoitada pela fome. Lá algum dia, arranjados todos num pedaço de terra de ninguém. Crescera labutando, manhãzinha a pôr-do-sol. Vida simples, vazia de grandes desejos. Panela na trempe, pinga de vez em quando, cigarro de palha. E a roça. Principalmente a roça, seu mundo! Tudo plantadinho, os frutos resultando.
Não se perguntava sobre mais nada. Ele e a gente de sua espécie, ele e sua mulher, aquela que conhecera na festa da cidadezinha a léguas distante e que lhe dera filhos; ele e o quinhão a ser cuidado, ele e os bichos e os pássaros daquele lugar.
Numa dessas horas em que se está esquecido de tudo, um homem adiantou-se do grupo que se achegara, exibindo uma porção de papéis: "Esta terra é minha. Você ficando, preciso de gente que conheça bem a redondeza, vai ser meu empregado". Sem entender nada daquilo, sem ter para quem apelar, mais tarde, concordou. Acabou ficando.
Longa trajetória, com mulher e filho transportados em pau-de-arara, juntamente com outros. Encontraria o irmão de sua companheira que lhe prometera abrigo, quando quisesse. Naquele percurso cansativo, quanta lembrança! E não sabia por que matutava sobre acontecimentos da época em que passou a ter patrão.
Do filho deste se lembrava com prazer. Rapaz que foi cedo para a capital, estudar. Vinha muito pouco à fazenda, brigava um bocado com o pai. Certa feita, na hora da conversa na varanda: "Pai, os empregados da fazenda necessitam de exame médico e seus filhos devem aprender a ler". Briga séria. Muito tempo sem se falarem. Menino bom, o filho do patrão!
O que lhe veio à mente, bem forte, foi algo de que nunca esquecera. O patrão não devia ter mandado o menino ao curral, a vaca estava muito braba, ele sabia. Foi assim, um coice só. O outro, pequenininho, vomitou dias e não aguentou.
Agora, restava um, o mais velho. Medo horrível, o de perder o terceiro. Subitamente, o barulho local arranca-o das recordações. A cidade, enfim. O necessário do patrão não dera sequer para a comida na viagem. Anos e anos de trabalho. No fim, um "Deus lhe proteja"!
Maravilhado com a cidade, logo de chegada, o alvoroço, as luzes. Era noitinha. Não se lembrava mais de fatos tristes. Devia ficar alegre como a cidade, como esta parecia estar dias antes da noite de Natal.
Procurando, aqui e ali, o endereço do irmão de sua mulher, chegou afinal ao que, mesmo com esforço, não se chamaria de casa. Foram bem recebidos, ao jeito da gente da roça, mesmo quando na cidade. Banho de lata, café quentinho com restos de pão sem manteiga reanimaram os recém-chegados.
No outro dia, a animação do cunhado:
- Escuta, amigo, estão precisando de gente no meu trabalho. Não tem carteira assinada. Você sabe como é, né? Estão embelezando a cidade para a festa de Natal. Vou lhe arrumar esse negócio, tá? Para começar não é nada mal.
Iluminação vistosa no centro. E na avenida principal. O povo nas ruas. E mil e uma maneiras para vender. Vender tudo. O comércio, agitado. Instantes de risos e de luzes. Claro que não seria uma iluminação geral. Somente em pontos visados pelas autoridades. Alguns bairros não poderiam deixar de ter a claridade necessária durante os festejos natalinos.
Em um desses bairros trabalharia o novo peão. Fosse no que fosse, empenhava-se a fundo. Esquecia-se das horas. Trabalhava com garra. Faltavam poucos dias para o dia principal. Ansioso por pegar o dinheirinho. A primeira coisa a fazer seria comprar um presente para o filho. Um presente com gosto, e bonito. Um presente comprado na cidade.
O menino iria vibrar, um caminhão bem grande. Ele sempre dizia que, quando crescesse, iria dirigir carro, conheceria uma porção de lugares. Na sua terra, sua vida consistia em ir ajudando o pai e, nas horas de folga, tomar banho de riacho, pegar passarinho e ficar olhando as formigas, a interrogar-se sobre aqueles bichinhos em fila, um atrás do outro, certinho.
Encontrava-se sentado à porta do tio. Carregava uma esperança que nunca acabava. Sabia da intenção do pai. Contente também estava, porque o pai ajudava a cidade a ficar bonita. Todo mundo precisava saber do que o pai fazia, que era muito importante.
De vez em quando, um sorriso aflorava-lhe no rosto pequenino e pálido. A hora ia passando, e o pai mais perto de chegar. Ria por tudo, e sozinho, do carro que passava cheinho de gente, da felicidade de quem ia dentro dele, e da felicidade do próprio veículo. Sim, por que não do carro também?
E riu muito, um riso sem medo, quando olhou para cima e viu a noite bonita com aquele mundão de pontos brilhando. "Bem que tinham razão, disseram que a noite de Natal era diferente, mais bonita mais alegre, mais feliz. Deus ficava lá em cima, velando por todas as crianças. Papai Noel viria, de mansinho, colocar o presente no chinelo, e ele entrava pela chaminé".
Mas, na casa em que estava não havia chaminé, então ele entraria por um daqueles buracos da parede. "Que bobagem! Menino grande não acredita mais em Papai Noel, invenção para menino pequeno". O tempo corria, e o menino não resistia ao sono que chegava devagarinho, devagar, bem forte. De cabecinha encostada à porta, dormiu. Um sono de criança sofrida e esperançosa.
Os homens lhe haviam dito:
- Vamos preparar as gambiarras, você pega os bocais, coloca neles dois pedaços de fios pequenos e depois prenda cada perna nesses fios maiores, na parte um pouco descascada. É muito fácil, enrola bem no fio, certo?
"Um pouco"...? pensou.
A produção tinha sido boa. Antes de terminar o dia, uma rua inteirinha concluída. Poderia até ir embora para casa. Mas, uma gambiarra enorme estava sendo colocada numa outra rua, e somente por dois homens. Prontificou-se a ajudar.
Uma parte, terminada em duas pontas, presa naqueles outros fios no alto. Pegaria a outra que se arrastava pelo chão e evitaria, inclusive, que os bocais acabassem de partir. Estendeu as mãos e segurou os fios com firmeza. Estava craque naquele serviço.
Um frêmito, um tremor, uma coisa nunca sentida invadiu-lhe o corpo por inteiro. Força poderosa o prendia aos diabos daqueles fios e não o deixava soltar-se. E a fazenda, e a mulher, e os filhos mortos, e o filho vivo à sua frente. Sobretudo este, de riso na face, à espera do presente. O caminhão, o caminhão, se afastando, ele também se afastando, tudo e todos se distanciando.
O som de um autofalante se espraiava:
Natal, Natal das crianças
Natal da noite de luz
Natal da estrela guia
Natal do Menino Jesus.
(Raymundo Luiz Lopes)
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