Foto: Hazily Light



Everton Nery


Antes do sonho ser sintoma,

o corpo era só carne com culpa.

Desejar era verbo sujo,

um impulso a ser domado,

um erro sussurrado nas confissões.

Algo a ser domesticado.


Mas então o desejo escorreu para dentro,

fez morada no escuro,

e Freud acendeu uma vela na caverna.

Descobrimos que não somos inteiros,

que o “eu” que fala e sussurra

esconde um outro que por vezes emburra.


Na dobra do lapso,

na fresta da fala,

no tremor que o corpo não explica,

lá, mora o que nos move.

Desejamos o que não sabemos,

e isso nos desenha,

nos desmonta e emprenha.


Mas quem segura a lanterna nesse escuro?

A escuta que liberta

também classifica.

A teoria que nos revela

também nos mede,

nos nomeia,

nos norma e também semeia.


E então pergunto:

meu desejo é meu

ou já nasceu interpretado?

Seja como Prometeu ou Epimeteu?



Sou liberdade ou caso clínico?

Inventei meu gozo

ou fui convencido dele?

O inconsciente, esse teatro de sombras,

é palco ou cela?

Ou ainda rede de anagramas?


Há noites em que sonho demais,

e acordo menos eu.

Outras, em que gestos simples precederam

dizendo verdades que anos de fala esconderam.


Entre a culpa herdada e o nome escrito no prontuário,

resta o que arde sem forma:

desejo nu,

sem dono,

sem cura,

sem mapa.

sem procura.


E talvez ser sujeito

seja isso:

andar por dentro do próprio abismo,

com uma pergunta acesa na mão,

e o silêncio,

sempre o silêncio,

respirando atrás.

como um eco que nunca se desfaz.