O beijo número um

 

A alegria é um bem intangível que as antigas gerações deixam para as novas e a mesa é lugar onde a tristeza não tem assento. 

Éramos nove e todo dia nos sentávamos para comer pão, café, cuscuz, feijão, arroz e carne. 

Galinha somente aos domingos e em dia de festa. 

O prato principal era a alegria que mamãe servia em panela de alumínio. 

Papai era pastor e Deus fazia questão do seu lugar na hora das refeições. 

Em nossa casa, Deus era tão tangível que mal prestávamos atenção. 

Mas, de vez em quando, ouvíamos uma gargalhada misteriosa e todo mundo gargalhava com Ele. 

Naquele tempo Deus era feliz. 

Ainda somos felizes porque mamãe, mesmo silenciosa, faz o nosso olhar e o de Deus brilharem. 

Tenho ciúme de Deus porque sei que estão marcando encontro em um lugar onde a esperança nunca acaba.

Não sei qual o endereço mas desconfio. 

Papai pediu licença a Deus para esperar um pouco, enquanto mamãe arruma os cabelos e veste o vestido novo que ganhou de presente para usar na ocasião.

No outro dia, vão pegar o trem para Boquim, a cidade onde papai foi feliz. 

Mamãe sempre fez questão de que aprendêssemos português, mas nunca nos explicou que felicidade era sinônimo de Honorina. 

Papai e mamãe não falam em nos levar e nos sentimos esmolambados, nos arrastando pelas ruas, como crianças abandonadas. 

Mesmo assim organizamos a celebração do Dia das Mães.

Papai estava falador e disfarçava um sorriso, como quem guarda uma passagem de trem. 

Nós fingíamos que escutávamos, mas nossos olhos tristes só enxergavam mamãe sentada em sua poltrona. 

Mamãe continuava silenciosa, mas sorria com a conversa de papai.

De repente, mamãe começou a cantar a cantiga que herdou dos seus antepassados: 

“O beijo de uma mãe é o beijo número um, quem não tem mãe nesse mundo beija a mãe de qualquer um”.

A tristeza é um bem tangível e a vida inventa dores todos os dias. 

Mas, no Dia das Mães, o intangível venceu mais uma vez e mamãe nos fez gargalhar.

 

Marcos Monteiro

Recife, 14 de maio de 2023.