A Ópera Negra do Portal do Sertão é título de um documentário cuja relevância do registro cultural talvez só seja plenamente percebida pelas próximas gerações. O Reisado de São Vicente, grupo situado na região de Tiquaruçu, no interior baiano, ainda é um dos polos de resistência à total aniquilação do sentido que uma festa tradicional possui e do valor histórico-social que uma manifestação como esta confere à localidade, ao seu povo e sua marca identitária. Para quem não conhece, O Reisado de São Vicente, grupo formado por trabalhadores rurais, é uma fusão artística, visceralmente popular, que exprime a partir da música – e da poesia que lhe fica inerente – hábitos e celebrações tradicionais intrínsecas à região. Essas informações, talvez repetitivas para alguns, já confeririam louvores à produção cinematográfica em pauta. Todavia, o olhar lírico impresso numa espécie de narrativa de viagem, conduzido na tela por um Asa Filho andarilho (Asa, além de músico e dono de um dos estabelecimentos mais charmosos da cidade de Feira de Santana, é Mestre em Cultura Popular), e dirigido por Ícaro de Oliveira, proporciona que integrantes do lugar expressem algumas inquietações sobre a etnia negra que os reveste, os cantos que povoam o trabalho no campo e, em suma, a vivência de tradições, dando, assim, voz àqueles que vivem de perto sua própria cultura, legitimando, ainda mais, a iniciativa do documentário.

A fala livre não deixa o espectador perdido. A costura fílmica é bem realizada e promove, também através de gravações musicais do próprio Reisado, um entrosamento genuíno entre público/película – o que me parece ser um dos objetivos de qualquer produção cultural. Um dos pontos altos é o depoimento de abertura, que imprime no telespectador um pensamento, singelo e eloquente, acerca da diferença de cor de pele; se não me falha a memória, a fala é arrematada da seguinte maneira: “a diferença de cor existe porque não dá pra ser tudo igual, tem que ser diferente” – direta, sem floreios, o depoimento faz refletir sobre o drama da etnia e o precário “argumento” que o preconceito étnico pretende sustentar. Para encerrar as linhas, vale mencionar que A Ópera Negra do Portal do Sertão registra tônicas que são, ou deveriam ser, caras a qualquer sociedade que se preocupa com a manutenção de si mesma, a exemplo da discriminação, da memória de um povo, e de todo um corpus sócio-afetivo que caracteriza o lugar. Em síntese, a composição dramática que recobre A Ópera Negra é de forte tecido poético e abre o Portal do Sertão para a entrada de novos interlocutores sociais e de uma atenção voltada para questões que devem ser refletidas pelo bem da preservação salutar de um povo.

Direção: Ícaro de Oliveira
Argumento: Asa Filho e Ícaro de Oliveira
Imagens: Augusto Bortolini, Cassius Borges, Ícaro de Oliveira, Poliana Costa e Thacle de Souza
Som Direto: Breno Tsokas, Lucas Pereira e Pedro Patrocínio
Mixagem e Edição: Pedro Patrocínio Produção:
Atelier Filmes Realização: Orcare e Atelier Filmes