Confesso:
nunca fui um entusiasta de “festas de rua”. Sempre acompanhei o carnaval mais
por curiosidade do que por vontade propriamente dita. Mas uma coisa deve ser
admitida, mesmo por aqueles que nunca foram grandes expectadores dessa
modalidade de festa: o carnaval é uma realidade, um fenômeno da cultura popular
brasileira, algo que, no mínimo, não deve passar despercebido pelos que o
percebem como tal.
Tratando-se,
especificamente, do carnaval da Bahia, algumas velhas indagações vieram a tona
recentemente com declarações de dois de grandes nomes da axé music, um nome
recente e outro, nem tanto. Enfim, quem pesquisa à fundo e à sério o fenômeno
axé music a algum tempo (só para citar, como exemplo, meu amigo Emerson Azevedo), sabe que o
“sistema axé” mudou muito de uns tempos para cá. Mas, enfim, vamos aos fatos.
Recentemente, em janeiro de 2014, o cantor
Saulo Fernandes, ex-vocalista das Bandas Chicafé e Eva, afirmou que o “sistema
axé está gasto”. Na declaração ele teria dito: “A
música axé não está gasta. O sistema axé é que está gasto, o camarote está
gasto, o modelo está gasto". O músico ainda afirmou que o referido gênero
musical continua vivo com novos artistas como Levy Lima (do Jammil e Uma
Noites), Tomate (ex-Razolla) e Filhos de Jorge (revelação de 2013) , e que
estes são "mais produtivos do que os veteranos”. Bell Marques, por
sua vez, ex-vocalista do grupo Chiclete com Banana, afirmou recentemente que “a corda dos blocos é necessária para que ricos e
pobres possam usufruir do Carnaval”.
Complementando, ele teria
dito: “corda sempre existiu e na minha opinião ao invés de separar, acaba
unindo o povão que acaba vendo de graça algo que é pago por uma parcela”. Diante de tais declarações (corajosas,
diga-se de passagem, independente do posicionamento de ambos), alguns
questionamentos se fazem pertinentes, tais como: Até que ponto o carnaval ainda
faz juz ao seu conceito de festa popular propriamente dita? Quem lucra, de
fato, com o “sistema axé”: o(a) artista, os donos de camarote ou os empresários
das grandes atrações? Até que ponto ainda há espaço para o surgimento e a
ascensão de novos artistas?
Na tentativa de respondar tais indagações,
vêm a tona alguns velhos questionamentos. O conceito de carnaval enquanto festa
popular (vale ressaltar mais uma vez, meus comentários se restringem ao estado
da Bahia) já não passa de “lenda” há muito tempo. Quem não tem uma boa grana (e
coloca boa nisso) para bancar um abadá e curtir a festa dentro de um espaço
fechado e limitado por cordões de isolamento, acompanhando os artistas
puxadores dos blocos (ou um camarote, para quem prefere uma vibe mais
“tranquila”), fica segregado aos limites fora das cordas, competindo espaços
muitas vezes com gente mal educada e/ou delinquente. Trata-se, nas palavras do
“pai do axé” Luiz Caldas (músico de primeiríssima grandeza, diga-se de
passagem), do “apartheid da alegria”. Isso sem falar nos lucros exorbitantes
que os camarotes e blocos geram para os grandes empresários – que ficam cada
vez mais ricos às custas de foliões que, muitas vezes, são constituidos de
pessoas de classe média baixa ou de classe baixa mesmo – e também para artistas
do chamado “primeiro escalão”, uma vez que eles, na maioria dos casos, são
sócios (quando não são donos).
E em relação às atrações “menores” e aos
novos artistas da axé music, o que explanar? Artistas e bandas de menor
expressão dentro do cenário em muitos casos acabam arcando do próprio bolso para
se apresentarem. É uma constatação cruel, porém verdadeira. Mais dura ainda é a
realidade de artistas que um dia foram considerados(as) estrelas dentro da axé
music e hoje vivem a margem do sistema. Muitos sequer se apresentam mais no
carnaval baiano, a não ser quando são convidados “de honra” de artistas do
“primeiro escalão”. O que falar de Márcia Short, Missinho e Márcia Freire, por
exemplo, só para citar alguns exemplos? Diante de tal constatação, outra
pergunta se faz pertinente: quem tem feito sucesso dentro do “sistema axé” nos
últimos anos? A resposta: as mesmas atrações de sempre – Daniela Mercury, Ivete
Sangalo, Chiclete com Banana, Asa de Águia, Cheiro de Amor, etc.
O axé se tornou um sistema engessado,
inflexível. A culpa é de ordem estrutural e não da música axé em si. Nesse
espaço, muita gente talentosa já desapareceu e vem desaparecendo a cada ano, à
medida que artistas da “velha guarda” vêm se arrastando as custas do saudosismo
acrítico de muitos de seus fãs, com um repertório, muitas vezes, tão ruim
quanto manjado – leia-se, o Chiclete com Banana, por exemplo, uma banda que
além de ser tecnicamente e liricamente muito ruim, possui um caráter para lá de
duvidoso fora dos palcos (o lendário Cacik Jonne, covardemente marginalizado
pelos seus “colegas” no pior momento de sua vida, que o diga!).
As velhas bandas em fase de reformulação (à
exemplo do próprio Chiclete com Banana) passaram a servir tão somente como
vitrine para jovens artistas que desejam um “lugar ao sol” nesse sistema.
Espero, sinceramente, que Felipe Pezzoni, Vina Calmon e Mari Antunes – artistas
bonitos(as), carismáticos(as) e talentosos – tenham sabedoria para deixarem suas
respectivas bandas (Eva, Cheiro de Amor e Babado Novo) no momento certo, a
exemplo de Saulo Fernandes. Algo mudará a partir de então? Estará Saulo correto
em sua “previsão”? Isso, só o tempo responderá!
Henrique Magalhães
Biólogo, professor, pesquisador e colecionador de discos de vinil.
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