Everton Nery


Primeiro disseram:

teu desejo ofende a Deus.

Teu corpo é templo e pecado.

Olha, toca, goza, 

mas com culpa.

De preferência,

ajoelhado.



Depois trocaram a batina

E também o paletó pelo jaleco.

Disseram:

não é mais pecado,

é disfunção.

Não é mais alma perdida,

é desvio estatístico.

Não é mais demônio,

é transtorno.


Mediram tua carne em escalas,

pesaram teu prazer em gráficos.

Chamaram de ciência

o que sempre foi vigilância.

Agora é “saúde sexual”,

mas ainda vigiada.

Agora é “autoconhecimento”,

mas com limites.


Perversão, inversão, compulsão.

Nomearam o indizível,

não para compreendê-lo,

mas para contê-lo.


Antes, o inferno era o fogo.

Hoje, é o laudo.

E o desejo,

esse que escapa à doutrina

e escorre pelos cantos do inconsciente,

foi posto em quarentena.

Fizeram do gozo um dado.

Do prazer, um formulário.

Mas ainda arde.

Ainda canta.

Ainda fura os mapas.


Foucault avisou:

não se trata de conhecer,

mas de controlar.

Não é o que a ciência revela

é o que ela permite sentir.


E tu, que carrega entre as pernas

o que não cabe no prontuário,

que pulsa além do dicionário,

sabe:

o que te salva

não vem do altar,

nem do manual.

Isto não é casual


Vem do silêncio

onde o desejo dança,

sem culpa,

sem nome,

sem tédio,

sem remédio.