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Foto: Divulgação |
A visão crítica das organizações feministas e do movimento
de mulheres e sua capacidade de fazer propostas foram fundamentais para que os
governos firmassem compromissos e instrumentalizassem políticas, programas e
ações voltadas para a erradicação das desigualdades e assimetrias entre homens
e mulheres. Entretanto, ao não reconhecerem o racismo como elemento histórico
estruturante das desigualdades na sociedade brasileira, esses avanços não foram
capazes de diminuir as desigualdades entre uma grande parcela da população.
Estamos falando de 49 milhões de mulheres negras, que representam 25,5% da
população do país, que permanecem à margem dessas políticas e representam a vulnerabilidade
social.
E são muitas as que deixaram de alguma forma a marca de seus
pés nessa estrada; algumas famosas e outras nem tanto – não vamos citar
exemplos para não cometermos injustiças com aquelas que foram líderes, mas que
permanecem anônimas. São essas mulheres negras que possibilitaram que outras
mulheres negras pudessem se tornar advogadas, sociólogas, escritoras,
professoras, universitárias, parlamentares, juízas e ocupassem, mesmo que de
maneira ainda incipiente, o lugar que lhes tem sido negado pela sociedade
racista e patriarcal.
Foram essas mulheres negras, jovens e ousadas que, há mais
de três décadas à frente de seu tempo, criaram organizações específicas de
mulheres negras, como o Nzinga Coletivo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, o
Instituto Geledés – Instituto de Mulheres Negras, o Criola, o Cedenpa e tantas
outras, inaugurando a tão hoje festejada interseccionalidade e desafinando o
coro dos contentes. Nossos passos, de fato, vêm de longe!
Essas mulheres negras trouxeram para o cenário nacional a
força de sua ancestralidade e sabiam que sem luta e vigilância nenhum de seus
direitos seriam assegurados por qualquer outro movimento social, lutando dentro
e fora de movimentos sociais para que suas vozes fossem ouvidas e reconhecidas.
Nesse sentido, a Marcha das Mulheres Negras de 2015, que
levou à Brasília cerca de 50 mil
mulheres de diferentes regiões do país, é um ponto de inflexão para a sociedade
brasileira, principalmente ao fazer emergir e trazer para o cenário nacional
movimentos que se encontravam isolados em seus territórios, em suas
especificidades e que passaram a se reconhecer cada vez mais como uma grande
comunidade de destino. Não à toa, o que melhor define o movimento de mulheres
negras hoje é a pluralidade de vozes representadas. E nele cabem todas as
mulheres negras: as cisgêneras e as trans; as héteras, as lésbicas e as bis; as
organizadas e as autônomas; as jovens e adultas, as religiosas e as ateias, as
do campo e as da cidade.
A marcha também teve impacto nas jovens negras, que vêm
intensificando suas mobilizações nos últimos anos. Um dos resultados se
traduziu na organização do II Encontro de Jovens Negras Feministas que reuniu,
no interior do estado de São Paulo, cerca de 400 mulheres negras, que enfrentam
muitos desafios além das questões intergeracionais. Segundo uma das
organizadoras desse encontro, “elaborar estratégias de atuação capazes de
promover o bem viver da população negra no contexto pós Marcha das Mulheres
Negras, a partir do diálogo entre lideranças do Movimento de Mulheres Negras e
as jovens reunidas no evento, foi um dos pontos principais do evento”.
No momento em que o Brasil se depara com um grave processo
político de desmandos e retrocessos, em que diferentes grupos sociais têm
buscado a organização da população para a defesa dos seus direitos ameaçados,
as mulheres negras têm se somado a esses esforços, promovendo e participando de
atividades de rua e de incidência política.
Entretanto, o Brasil voltou ao Mapa da Fome, o congelamento
do orçamento social vem paralisando os investimentos em políticas públicas
desde a edição da Emenda Constitucional 95/2016 e as mulheres e a juventude
negra continuam sobre representadas nos índices de exclusão social e de
violência. Por isso, apesar do avanço das nossas lutas e de o movimento de
mulheres negras ser considerado o mais potente da última década, sabemos que
estamos muito longe das conquistas que reivindicamos. Ainda somos as principais
vítimas de violências e feminicídio, do desemprego, do racismo estrutural, da
pobreza, que nos colocam em situação de extrema vulnerabilidade.
Para as jovens negras feministas, o desafio está em como
aprofundar e traduzir para seu público os novos conceitos da contemporaneidade
como feminismo negro, feminismo decolonial, feminismo interseccional,
mulherismo, entre outros que surgem a cada dia e que carecem de aprofundamento.
Elas também têm pela frente o desafio de encontrar novas formas de promover um
diálogo entre a moçada da academia e a juventude da quebrada, vendo como a
geração tombamento pode exercitar a troca não hierárquica de saberes para criar
estratégias de ações conjuntas. Além disso, é necessário pensar em como
promover novas formas de mobilização e atuação, particularmente em tempos de
ativismo digital pelas mídias sociais, sem perder a essência do que foi pensado
e produzido pela geração anterior de jovens ativistas negras.
De onde viemos, onde estamos e para onde iremos tem sido
colocado no centro dos debates contemporâneos. São muitos os desafios para a
organização das mulheres negras. Como afirma a cientista política Ana Claudia
Jaquetto Pereirano seu livro Intelectuais Negras: Horizontes Políticos, “são
muitos projetos e é importante buscar tendências e continuidade entre esses
horizontes políticos, não porque seja preciso haver um projeto só, ou porque um
é melhor que o outro, mas para ver o que as mulheres negras têm sido capazes de
produzir e para que possamos conhecer e nos reconhecer nesses projetos”.
Para irmos cada vez mais longe e conquistarmos as
transformações que desejamos, é preciso continuar acreditando na utopia, com a
certeza de que nossa luta é o motor gerador de mudanças para um efetivo Bem
Viver. Por nós, por todas nós.
* Nilza Iraci é Comunicadora Social e Coordenadora Executiva
do Geledés – Instituto da Mulher Negra
A Geledés – Instituto da Mulher Negra é uma organização
política brasileira de mulheres negras contra o racismo e sexismo, tendo como
principal objetivo erradicar a discriminação presente na sociedade que afeta
indivíduos com essas características, sem desencorajar a luta contra todas as
restantes formas de discriminação, tais como a homofobia, a discriminação
baseada em preconceitos regionais, de credo, opinião e de classe social, tendo
em vista que todos os alvos de discriminação são afetados pela iniquidade que
tende a restringir a fruição de uma plena cidadania. Seu nome deriva do
conceito de gelede, sociedades secretas femininas na cultura iorubá.
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Cultura